Durval estava sentado no sofá da sala de Heitor ao lado da cacatua. Ambos, ele e pássaro, imóveis como dois espectadores de um filme de suspense, com o ar retido dentro dos pulmões, apenas esperando o desenlace da próxima cena para respirarem aliviados ou quem sabe explodirem num grito. Tudo porque o relato de Heitor, o ex-capitão do exército que ficara preso dentro do laboratório com um monstro, havia chegado a um momento crucial. Depois ter a mente invadida por aquele ser hediondo, parece que Heitor estava prestes a ser preso pelos soldados que o descobriram.
Heitor levou o charuto à boca e aspirou a fumaça, de olhos fechados soprou lentamente na direção do teto da sala. Parecia até que o homem não queria mais contar a história. Durval esperou pacientemente.
— Sim, eu queria que eles tivessem me prendido quando me descobriram, e me jogado em uma cela suja e fétida do quartel, quem sabe junto com o tenente De Matos que havia sido espancado por aqueles porcos imundos!
Heitor olhou longamente para a cacatua.
— Eles não me surraram como haviam feito com o tenente De Matos, Durval. Eles…
Durval percebeu o quanto era difícil para Heitor remexer naquelas memórias.
— Vou te mostrar uma coisa — disse Heitor.
Ele levantou-se e foi até um armário no fundo da sala. Abriu a porta de baixo e pegou o que parecia ser um saco de pano vermelho. Voltou e se sentou com o embrulho no colo. Tateou o conteúdo do saco com o que parecia ser um misto de respeito e tristeza. Então abriu a corda que prendia a boca do saco e tirou de dentro um crânio.
Era em tudo idêntico a um crânio humano, exceto pelos chifres que se projetavam da testa. Cada um da grossura de um punho fechado, como os chifres de um carneiro, recurvados e enrugados, iam afinando até se tornarem tão finos quanto a ponta de um punhal.
Heitor segurou o crânio bem de frente para Durval. A caveira cheia de dentes pontiagudos parecia sorrir de modo maligno. As cavidades oculares eram profundas e o osso ao redor das órbitas proeminente, o que fazia o crânio todo parecer enfurecido.
Então a cacatua começou a gritar e balançar a cabeça para cima e para baixo com as penas do pescoço eriçadas. Pulou do braço do sofá e começou a tentar bicar o crânio que Heitor tinha nas mãos. Heitor tratou de devolver a caveira de volta ao saco de pano, afastando com a outra mão o pássaro que, descontrolado, arranhou o braço de Heitor com as garras. Heitor deu um safanão na cacatua que caiu no chão. Mas imediatamente pulou meio voando de volta ao sofá tentando agarrar o saco de pano. Heitor levantou-se e guardou o saco de volta ao armário no fundo da sala. A cacatua era inteligente e, percebendo que não poderia mais alcançar o crânio já que estava trancado dentro do móvel, partiu para cima de Heitor, inconformada. Acabou empoleirando-se em seu braço enquanto grasnava como um ganso e batia as asas com violência na direção do rosto de Heitor.
Durval tentou ajudar, pegou a bengala e se levantou para afastar o bicho de cima de Heitor. Com muito custo, os dois conseguiram abrir a porta da sala, jogar a ave para fora e fechar a porta. Voltaram para o sofá, esgotados. Ainda dava para ouvir o pássaro do diabo lá fora gritando.
Episodio XLIX continuana próxima edição.
JOSÉ GASPAR
Cineasta e escritor
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