Quem diz “futebol não é coisa de menina”, volta o jogo em várias casas e passe sua vez. Visibilidade, audiência recorde, bons jogos e repercussão global. O sucesso da Copa do Mundo feminina, no ano passado, foi indiscutível. Quando esse mesmo futebol quebra barreiras e é aliado a projetos sociais, a força multiplica, ainda mais em tempos de pandemia.
Com objetivo de quebrar padrões da desigualdade de gênero enraizados nas comunidades, três mulheres, de diferentes países, arregaçaram as “chuteiras” e tocaram seus projetos de futebol para meninas, como treinos e capeonatos, além de oficinas educacionais que tratam temas como violência, equidade de gênero e sexualidade.
A brasileira Tatiana Ferreira, que mora na ilha de Mallorca, na Espanha, há mais de 20 anos, é uma das criadoras da Associação Deporte para La Igualdad e, há quatro anos criou o programa “Futebol pela Igualdade”, usando o esporte para trabalhar a igualdade de gênero, inclusão social e empoderamento de jovens mulheres. O programa atende atualmente cerca de mil crianças.
“O sucesso foi tanto, que começamos a ter colaborações com outras entidades na Argentina, Costa Rica, Colômbia, Peru e Brasil, numa parceria com o clube carioca Fluminense, e a CBF social, com três dias de atividades com 50 crianças do Complexo do Lins (dos morros da Praça Seca e da Cidade de Deus)”, conta Tatiana, acrescentando
que todas atividades são gratuitas e, mesmo nesse ano tão difícil, a associação aceitou o compromisso com a “Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ONU)”, um plano de ações que visa a erradicação da pobreza e a promoção do desenvolvimento econômico, social e ambiental em escala global até o ano 2030.
Para sobreviver à pandemia, as atividades foram adaptadas para o mundo virtual e, com isso, também alcançaram crianças e famílias de outros países. “Fazemos um cinema solidário com a projeção de filmes temáticos de futebol transmitindo valores como a igualdade, tolerância e companheirismo. Também há formação gratuita por webinars, como empoderamento da mulher, organização de eventos esportivos, empoderamentos de equipes, linguagem de gênero direcionada a mulheres. ”
Para ter um gás e se manter a toda, a associação recebe ajuda do Governo das Ilhas Baleares (arquipélago perto da costa leste da Espanha), apoio de Miguel Bestard, presidente da Federação Balear de futebol, da Real Federación Española de Fútbol e das prefeituras das cidades onde os eventos são realizados e de empresários locais.
Futebol para cegos
Agora vamos para a Argentina com uma história além da superação. Até ser técnica e dirigente de futebol, Evelina Cabrera, de 34 anos, morou nas ruas, revirou latas de lixo atrás de comida, até se tornar professora e depois jogadora do Club Atlético Platense. Com esse currículo e sempre de olho no próximo, ela fundou a Associação Argentina de Futebol Feminino (AFFAR), formou a primeira equipe de meninas cegas em Buenos Aires e falou na ONU (Organização das Nações Unidas), em Nova York, sobre seu trabalho para empoderar mulheres e dar-lhes ferramentas para uma vida melhor, além de ter sido reconhecida como uma das 11 mulheres mais influentes da América Latina e uma das mais inspiradoras do mundo na lista da “BBC”.
Ou seja, ela é uma referência que potencializou o papel dos esportistas na Argentina e em todo o mundo.
“Em 2013 tive um tumor que me fez parar de jogar futebol – era benigno e foi retirado com cirurgia, mas o médico disse que eu não voltaria a fazer atividade física. Meu mundo desabou, eu entrei em uma crise tremenda e foi então que meu amor pelo esporte falou mais alto e decidi treinar meninas carentes em uma praia ao ar livre na estação Tigre (Buenos Aires) e no Nueva Chicago Athletic Club (com sede em Buenos Aires, no bairro de Mataderos)”. Foi um sucesso imediato e, no mesmo ano, ela viajou ao México como técnica da seleção argentina na Copa do Mundo dos Sem-Teto.
Três anos depois, ela foi convidada pela ONU em Nova York para apresentar sua história no Fórum Juvenil do Conselho Econômico e Social, que reúne jovens líderes de todo o mundo. Ela destaca que, em 2016, sua maior gratidão foi conseguir que sua associação aderisse à campanha “Junte-se à América Latina”, da ONU, para acabar com a violência de gênero.
“O meu trabalho é dar ferramentas às mulheres para elas se desenvolverem de forma independente e autônoma através do futebol”, resume Evelina que, apesar das suas conquistas, continua trabalhando diariamente para atingir mais meninas em comunidades carentes. “Esporte não tem gênero”, frisa.
Com pandemia, claro, o ano foi difícil, mas ela nunca pensou em parar. “Nada foi fácil para mulheres (principalmente aquelas que optaram pelo futebol) mas, se a vida me ensinou algo, isso foi a luta. E o tempo me fez entender que não é só para mim, mas para milhares de mulheres invisíveis que lutam e se levantam todos os dias para ter uma vida melhor. Nosso gênero e origem não devem
determinar nosso futuro. É um caminho difícil, mas com a luta coletiva por um mundo unido podemos alcançar a igualdade”, finaliza.
Futebol para meninas
A mexicana Regina Vivanco Perichart comanda o projeto “Fundación Deportiva para una vida Sana” (em tradução livre, “fundação esportiva para uma vida sã”), similar ao de Cabrera, há 20 anos, na Cidade do México, se aproveitando do fato de a família ter uma Academia de Futebol por lá. Com os problemas que afetam aquele país, como drogas, violência, abandono e gravidez na adolescência, ela e sua família decidiram criar uma base, através do futebol, para fornecer ferramentas para crianças e seus familiares, com o intuito de melhorar sua comunidade e a qualidade de vida.
“Nossa visão é poder alcançar comunidades nos 32 estados do México através de nossos programas, que levam oficinas de futebol, arte, dança, meio ambiente, desenvolvimento humano, às comunidades de baixa renda e, assim, formar uma rede”.
Com a pandemia, alguns projetos ficaram parados, porém Regina usou a criatividade e criou o “Juega conmigo”, em que qualquer pessoa pode adotar uma criança do programa e, assim, pagar uma anuidade, oferecendo uma oportunidade para que ela pertença à academia.
“As maiores dificuldades estão sendo arrecadar fundos para ajudar as crianças e conseguir novos doadores. Mas não pensamos em parar e temos planos para o futuro, um deles é aprimorar a comunicação nas redes sociais para chegar a mais pessoas e alcançar mais comunidades dentro da República Mexicana”, afirma Regina, que complementa que ainda pretende incluir ajuda a grupos de mulheres idosas de diferentes comunidades.
VIVIANE FAVER
Jornalista
vfaver@gmail.com