O rosto moreno de Melinda estava a poucos centímetros de Durval, um rosto forte com queixo proeminente e grandes olhos verdes. A mulher de Heitor era absolutamente linda, devia ter no máximo 25 anos e seus cabelos longos e negros iam até o meio das costas. Ela usava um vestido curtíssimo florido que deixava à mostra seus braços e pernas. As coxas eram lustrosas e dava para ver os minúsculos pelinhos na pele que parecia de veludo de tão suave.
Melinda estava debruçada sobre Durval, um joelho apoiado no sofá e a outra perna esticada. Suas mãos eram habilidosas ao fazer o curativo no braço de Durval. A pele de Durval, ao contrário, era flácida e murcha, tão fina quanto uma gaze. Não admira que as garras da cacatua tivessem feito tanto estrago. Os pés de uma cacatua são do tamanho dos pés de um pombo. Durval chegou a sentir um pouco de vergonha por ter se machucado tanto em sua luta com um pássaro pequeno como aquele. Para seu consolo, Heitor também havia se machucado, até mais do que ele. Melinda havia primeiro cuidado do marido que estava com um curativo na testa e outro não mão. No resumo da ópera, os dois senhores haviam levado a pior no confronto com o pássaro, uma verdadeira surra. Tudo porque o bicho havia enlouquecido e atacado Heitor quando ele inadvertidamente tirou uma caveira com chifres do armário. Na tentativa de ajudar o amigo, acabou sobrando para Durval que agora recebia cuidados de Melinda. Esqueceu da dor dos arranhões, quase desejava ter sofrido injúrias no outro braço também para ficar mais alguns momentos perto de tão doce criatura.
Os resmungos de Heitor trouxeram Durval de volta do transe. Ele estava remexendo nas gavetas do armário da sala procurando sua caixa de charutos.
— Como você pode ter perdido os charutos, amor? — Perguntou Melinda. Seu hálito era de menta.
— E como vou saber? — Heitor grunhiu contrariado. — Tudo culpa da Dorotéia!
— Você sabe que ela não gosta da caveira.
— Ela já tinha ficado louca assim antes com a caveira? — Perguntou Durval.
— Da primeira vez foi pior — disse Melinda.
— Sério?
— A Dorotéia arranhou perto do olho do Heitor, ele passou isso aqui de ficar cego da vista — ela fez um gesto com os dedos mostrando um espaço mínimo.
— Achei que ela tinha acostumado – explicou-se Heitor.
— E depois ela fugiu — continuou Melinda. — Demoramos quase uma semana para encontrar. Estava no ferro-velho do Geraldo. Nem queria vir com a gente. O Heitor teve que usar uma luva para tirá-la de debaixo de um carro enferrujado onde ela se aninhou. Depois, aqui em casa, não queria comer. Custou para voltar ao normal.
— Pelo menos dessa vez ela não fugiu — disse Durval, se referindo aos gritos que a cacatua dava de quando em quando do lado de fora da casa.
— Perdi mesmo a caixa de charutos!! Como pode isso?
— Já te ajudo a procurar — disse Melinda terminando o curativo no braço de Durval. — Já está pronto para outra, seu Durval! Desculpe mais uma vez pela Dorotéia.
— Tudo bem. Ela se assustou com a caveira.
Melinda sorriu e se levantou.
Episodio L continuana próxima edição.
JOSÉ GASPAR
Cineasta e escritor
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