Durval não conseguia dormir. Já estava há quase duas horas rolando na cama e matutando sobre tudo que Dolores havia dito na cozinha. De fato ele sempre desconfiara um pouco do amigo professor de biologia. Mas nunca chegara a considerar seriamente que Botelho seria o assassino. Afinal, os dois se conheciam há quase cinquenta anos.
Suzana, a esposa de Botelho, nunca foi de muita conversa. Sempre tricotando ou lendo um livro, quase não participava das conversas quando os dois casais se reuniam. Mesmo assim, os jantares no sítio sempre eram agradáveis. Botelho contava sobre suas conquistas durante o período em que fora pesquisador do exército e Durval falava de seus tempos em Israel como missionário beneditino. A conversa sempre terminava com um nostálgico “bons tempos”, dito em meio a algum pigarro.
De qualquer forma era difícil saber se tudo o que Botelho contava sobre seu tempo no exército era verdade ou imaginação melancólica de um cientista aposentado que não havia conseguido revolucionar o mundo. Durval nunca deu muita trela às histórias excêntricas do professor. Mas tinha certeza absoluta que ele nunca mencionara um homem com chifres espiralados de bode no meio da testa.
Durval desistiu de dormir. Levantou-se da cama procurando não fazer barulho para que Dolores não acordasse e foi para o andar de baixo.
Nem lembrava quando havia sido a última vez que ligara aquele computador.
Digitou “homem com chifres”. A internet não era das mais rápidas, mas depois de alguns segundos, uma lista com 475 mil resultados apareceu na tela.
Havia um álbum de jazz de Miles Davies chamado “O Homem com Chifres”. Uma tal de Liang Xiuzhen chinesa que diziam ter desenvolvido um chifre de unicórnio bem no meio da testa. Era um único pedaço de osso que saía da fronte da mulher como uma grande unha virada para baixo. Uma francesa de 69 anos tinha um chifre crescendo em sua testa por quase duas décadas. Um homem com chifre na nuca. Parecia que não era tão incomum, afinal. Todos casos de doenças relacionadas ao crescimento ósseo, também chamadas pela medicina de Cornu Cutaneum. Um crescimento anormal de queratina a partir do osso que rompe a pele. Geralmente na cabeça. Mas o que Dolores relatara não era em nada parecido com nenhuma daquelas fotos.
Durval lembrou-se da escultura de Moisés na Basílica de São Pedro em Roma, onde o profeta é retratado por Michelangelo com um belo par de chifres projetando-se para cima por entre os cabelos. A própria Bíblia na tradução de São Jerônimo, afirma que quando Moisés desceu do monte Sinai com as tábuas dos Dez Mandamentos, possuía chifres. Êxodo, capítulo 34, versículo 29.
Parecia que os chifres vinham acompanhando a humanidade há algum tempo. Durval desligou o computador, pegou sua flauta contralto e foi para a varanda. Com uma surdina feita de papelão tocou Canon em Ré Maior de Pachellbel no silêncio da madrugada enquanto esperou o dia amanhecer. Assim que o sol despontasse ele ia tirar aquela história a limpo.
Episodio XXVIII continua na próxima edição.
JOSÉ GASPAR
Cineasta e escritor
www.historiasdooutromundo.com
jagramos@gmail.com