À primeira vista, a resposta para essa pergunta é fácil: somos o produto da miscigenação entre os colonizadores portugueses, os índios que viviam no Brasil e os africanos trazidos como mão-de-obra escrava, além dos imigrantes que chegaram entre os séculos 19 e 20 – como alemães, italianos, japoneses. Até aí, tudo bem. Somos, enfim, um povo mestiço genética e culturalmente que, apesar da diversidade, compartilha certos traços em comum.
A questão, porém, fica um pouco mais complicada quando se trata de buscar a essência do que se convencionou chamar de caráter nacional, aqueles traços que explicam uma série de comportamentos que costumamos encarar com naturalidade mas que, quase sempre, causam surpresa entre os estrangeiros.
Não é só um estereótipo. Os brasileiros se relacionam com mais afetividade. Os brasileiros conversam na rua, enquanto na Europa o silêncio predomina nas estações de ônibus e metrô.
E quando analisamos se o brasileiro é criativo ou enrolão, extrovertido ou indiscreto, cordial ou malandro, maleável ou corruptível?
Após mais uma enxurrada de denúncias de corrupção, a discussão sobre a essência do caráter volta à berlinda. De onde vem o “jeitinho”, a informalidade, a naturalidade diante da miséria, os preconceitos, a capacidade de depositar fé em mais de uma religião?
No século 20, livros como “Casa-Grande & Senzala”, de Gilberto Freyre tentaram responder a algumas dessas perguntas. Mas as interpretações clássicas sobre o que é o brasileiro seguem válidas hoje?
Que o brasileiro é miscigenado, é algo que se vê. Mas quanto? Em que proporção? Ainda no império, a mistura de etnias costumava horrorizar os europeus que desembarcavam no Brasil. Na época, influenciados pelas teorias raciais, eles viam na miscigenação uma ameaça de degeneração de todas as raças que viviam no Brasil. Hoje, os biólogos já descartaram o próprio conceito de raça. Os pesquisadores sabem que há tantas variações genéticas em um grupo com traços físicos em comum que a noção de “raça” perdeu seu sentido – o rastreamento da herança genética é feito por meio de análise do DNA.
No Brasil, o principal mapeamento de nossos mais de 500 anos de miscigenação é comandado pelo geneticista Sérgio Danilo Pena, da Universidade Federal de Minas Gerais. A primeira descoberta foi a diferença entre a carga genética dos antepassados paternos e maternos.
Enquanto a maioria das linhagens paternas dos brasileiros brancos é de origem européia (cerca de 90%), grande parte das linhagens maternas é de origem ameríndia e africana (cerca de 60%). Ou seja: a maioria tem traços europeus herdados dos antepassados masculinos e traços indígenas e africanos herdados da mãe. A ciência comprova que o colonizador europeu não se fez de rogado em ter uma prole numerosa com escravas e nativas.
A falta de relação entre a cor da pele e a origem genética dos brasileiros se destaca. Cerca de dois terços das amostras genéticas de pessoas de cor branca não eram de origem européia. Esses dados revelam que, no Brasil, a classificação de pessoas pelo aspecto físico é inútil, já que, geneticamente, muitos brancos podem ser considerados negros… e muitos negros podem ser considerados brancos.
Mas o que faz com que os brasileiros se comuniquem de forma tão diferente de pessoas de outros países, inclusive de Portugal? Por que, quase sempre, os brasileiros prefere tirar alguma dúvida pessoalmente do que lendo o manual de instruções?
A preferência pela língua falada no Brasil não esta apenas ligada a um traço psicológico ou às altas taxas de analfabetismo do país. Essa preferência vem do fato de que durante séculos o brasileiro tinha 2 línguas: a portuguesa, usada nos documentos, e a chamada língua geral (o tupi adaptado pelos jesuítas para converter os índios), falada no dia-a-dia, dentro das casas.
Como a língua geral não era escrita, estaria aí a origem da tendência do brasileiro em resolver qualquer coisa “na conversa”.
Não fosse por um decreto do marquês de Pombal, em 1757, impondo a língua portuguesa e proibindo a disseminação do tupi (e por tabela, o poder de ação dos padres jesuítas), essa influência poderia ter sido ainda maior. Caso a decisão de Pombal não fosse bem-sucedida, é possível até que o Brasil hoje tivesse 2 línguas oficiais: o português e o tupi.
Em 1943, após uma visita de Walt Disney ao Brasil, como parte da política de “boa vizinhança” dos EUA que visava reforçar os laços com os sul-americanos durante a 2ª. Guerra Mundial, o Pato Donald apresentou um novo companheiro no filme “Alô, Amigos”. Seu nome era Joe Carioca, para os americanos, ou Zé Carioca, para os brasileiros. Um simpático e falante papagaio. Dali em diante, a imagem do brasileiro se firmava como a de uma espécie de “bon vivant” tropical, cheio de ginga, que não se adaptava a empregos formais e vivia de “bicos”.
Mas, muitos anos antes de ganhar o mundo, a figura típica do “bom malandro” já estava presente no imaginário do Brasil. O malandro seria a figura do mulato brasileiro que dribla o preconceito e consegue uma certa ascensão social por meio de favores conquistados com ginga e simpatia.
Antes de Zé Carioca, as desventuras do personagem “Macunaíma”, de Mário de Andrade, lançado em 1928, já haviam revelado a essência malandra e mestiça do caráter nacional.
Em 1936, o historiador Sérgio Buarque de Holanda dedicou um dos capítulos do seu livro “Raízes do Brasil” ao estudo do chamado “homem cordial”, termo usado então para tentar explicar o caráter do brasileiro. Um dos traços do brasileiro cordial era, a propensão para sobrepor as relações familiares e pessoais às relações profissionais ou públicas. O brasileiro, de certa forma, tenderia a rejeitar a impessoalidade de sistemas administrativos em que o todo é mais importante do que o indivíduo. Daí a dificuldade de encontrar homens públicos que respeitem a separação entre o público e o privado e que ponham os interesses do Estado acima das amizades.
Talvez por isso, quando a amizade e o jeitinho não funcionam, é normal ouvir-se um ríspido e autoritário “Você sabe com quem está falando?”
No livro “Carnavais, Malandros e Heróis”, descreve o dilema herdado pelo brasileiro. De um lado, nos submetemos a um sistema de leis impessoais cuja obediência nos países ricos nos causa inveja e admiração. Internamente, contudo, encaramos essas leis como uma espécie de estraga-prazeres – e os burocratas, sabendo disso, parecem muitas vezes aplicá-las para dificultar a vida do cidadão. De outro lado, existiria o sistema da nossa “rede de contatos”, em que impera o parentesco, a amizade ou qualquer ligação pessoal que drible a lei. Trocando em miúdos: a lei é vista – e muitas vezes aplicada – como um castigo e para fugir desse castigo vale a malandragem, o jeitinho.
Não teve jeito. Por mais que o correspondente do jornal espanhol El País tentasse, a diarista de sua casa não aceitou a idéia de almoçar à mesa com ele e sua esposa. “Para ela, isso é impensável”, diz Juan Arias. “Só depois percebi a relação ambivalente que o brasileiro tem com as pessoas que trabalham em sua casa.”
De um lado, a intimidade quase familiar com a empregada doméstica. De outro, direitos trabalhistas muitas vezes desrespeitados e a restrição à área de serviço. Mesmo em edifícios modernos, a chamada “área de serviço” permanece como uma “herança da senzala”.
A escravidão deixou marcas não só na arquitetura e no urbanismo, como em toda a vida do brasileiro.
Uma das mais perniciosas heranças escravagistas teria sido a naturalidade com que se convive com a miséria no Brasil. É como se a escravidão tivesse feito com que o país se acostumasse com a existência de cidadãos de primeira e de segunda classe. Essa convivência com a desigualdade durante séculos faz com que as pessoas não se comovam mais com a miséria.
Os esforços de urbanização e saneamento falhavam em fazer da cidades brasileiras uma reprodução das capitais do mundo. No Rio, por exemplo, os destroços dos velhos cortiços derrubados para a construção de grandes avenidas no estilo parisiense serviam de material para os sem-teto construírem moradias improvisadas nos morros, dando origem às primeiras favelas cariocas.
Qual a imagem que sobressairia do país? A urbanizada, branca, européia, ou a negra, favelada, africana?
Foi a imagem do mulato que prevaleceu. O marco dessa mudança teria aparecido com a publicação de “Casa-Grande & Senzala”, de Gilberto Freyre, em 1933.
Na cultura, o movimento iniciado com a Semana de Arte Moderna de 1922 também já havia absorvido essa identidade mestiça na obra de artistas plásticos como Tarsila do Amaral e escritores como Mário de Andrade, o pai de Macunaíma. Só faltava mesmo o governo assumir que o Brasil, era um país mestiço.
Isso ocorreu com o advento do Estado Novo de Vargas. Foi quando a capoeira virou esporte nacional, o samba passou a ser a música brasileira por excelência e a feijoada, com o preto do feijão e o branco do arroz, o verde da couve e o amarelo da laranja, se torna o prato oficial do brasileiro. Anos depois, a música “Aquarela do Brasil”, de Ary Barroso, consagraria a identidade mestiça cantando as virtudes do “mulato inzoneiro” para o mundo. No Brasil existe diversidade de raças, cultura e até mesmo de religião. Em que outro país alguém pode ser um pouco católico, um pouco espírita e ter medo de encruzilhadas?
Mas qual será a cara do brasileiro no século 21? Algo está mudando. A população parece menos propensa a aceitar o “jeitinho” quando ele significa a promiscuidade entre o privado e o público. Mas é claro que isso varia de região para região no país, e ainda é cedo para dizer se essa mudança é para valer ou é de superfície.
Um dos erros do brasileiro é acreditar que precisa se tornar sisudos e impessoais para fazer com que o país se desenvolva e todos tenham acesso à cidadania.
Se a malandragem se restringir ao lado bem-humorado, autocrítico e tolerante, e ficar fora da política, então não há com que se preocupar.
Como o povo sofre! Essa é a conclusão de uma pesquisa do Centro de Pesquisa e Documentação Histórica da Fundação Getúlio Vargas em parceria com o Instituto de Estudos da Religião.
Veja as respostas dos entrevistados:
• Sofredor – 74,1%
• Trabalhador – 69,4%
• Alegre – 63,3%
• Conformado – 61,4%
• Batalhador – 48,0%
• Solidário – 46,1%
• Revoltado – 42,3%
• Pacífico – 40,4%
• Honesto – 36,2%
• Malandro – 30,8%
• Violento – 28,5%
• Preguiçoso – 24,0%
• Egoísta – 21,6%
• Desonesto – 17,2%
Mazelas como a corrupção endêmica e a desigualdade social não afetam a auto-estima dos brasileiros: 85% deles dizem sentir orgulho de sua nacionalidade, segundo uma pesquisa feita pelo instituto Datafolha. De acordo com o mesmo levantamento, 61% acham o Brasil um país ótimo ou bom para viver e 72%o consideram “muito importante” no ce-nário mundial. O amor-próprio é mais acentuado nas regiões Norte e Centro-Oeste, onde 91% dos entrevistados responderam ter mais orgulho que vergonha de ser brasileiro. Essa proporção cai para 83% na Região Sudeste e atinge seu menor valor entre os habitantes da cidade de São Paulo, onde o sentimento positivo é compartilhado por 79% da população.
Fonte: texto de Rodrigo Cavalcante para a redação da revista Superinteressante