Durval olhou sorrateiro pela janela. A cacatua estava lá fora, caminhava de um lado para o outro pelo chão da varanda e de vez em quando dava um grito estridente. Subiu na cadeira de vime e pulou para a mureta com as asas abertas. Então encarou Durval em silêncio olhando fixamente com a cabeça de lado, usando apenas um olho. Era como se o pássaro quisesse dizer alguma coisa. Contar do perigo.
Durval caminhou de volta ao sofá e sentou, deixou a bengala apoiada na mesinha de centro e esticou a perna engessada.
Heitor e Melinda haviam sumido da sala, mas dava para ouvi-los em algum outro cômodo da casa, talvez no quarto, procurando a bendita caixa de charutos que Heitor havia perdido na confusão com o pássaro enlouquecido.
Durval procurou um relógio pela sala, mas não encontrou nenhum. Imaginou que já ia começar a escurecer e seria melhor voltar para casa. Estava preocupado com Dolores. Mas precisava saber o que diabos havia acontecido com o tal homem com chifres que estava preso no laboratório do exército. Será que Heitor estava gagá? Estaria inventando tudo aquilo?
Durval poderia duvidar da sanidade do homem, mas não dava para duvidar de seus próprios olhos. Ele havia visto a fotografia do monstro. Não era montagem aquilo. E havia visto a caveira com chifres. E mais, não havia nenhum motivo para o ex-capitão do exército inventar aquela história, havia?
Durval revirou a mente e não achou nenhuma explicação plausível a não ser que a verdade era de fato assustadora e fantástica.
Seu amigo Botelho havia feito experiências com um homem que tinha chifres. Sim, Durval sabia muito bem que havia mais absurdos no mundo do que as histórias de ficção nos relatam. Mas as mentiras daqueles que consideramos amigos são difíceis de engolir. Durval considerava Botelho seu verdadeiro amigo. O único amigo que tinha, na verdade.
Como o professor de biologia podia ter mentido e escondido tudo aquilo de Durval por tantos anos? E dissimulado quando alegou que a mancha vermelha no tapete da sala de Durval era sangue. Ele já sabia que se tratava de sangue. Mas o que ele teria a ver com o cadáver que estava na cozinha de sua casa? Durval estremeceu ao se lembrar de quando havia sido empurrado para o precipício dentro de seu Corcel por uma camionete Ford F-1000 idêntica a de Botelho. O canalha havia tentado assassiná-lo. Mas por que? Afinal Durval não sabia nada sobre o cadáver da cozinha. Pelo contrário, só queria voltar à paz e pacata vida de aposentado jogando buraco com sua amada Dolores, lendo seus livros românticos baratos e resolvendo quebra-cabeças de paisagens europeias na mesa da sala. Mas como resolver o quebra-cabeças que se impunha agora diante dele? Tentou recapitular para ver quais peças faltavam. Precisava de um papel e caneta. Queria começar a fazer um esquema das coisas até aquele momento. Faria uma tabela, organizaria cada item, cada pista, coletaria as peças importantes e resolveria aquele mistério. Levantou-se e chamou Heitor.
Episodio LI continuana próxima edição.
JOSÉ GASPAR
Cineasta e escritor
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