Em meio à censura, repressão e violência da ditadura militar, um grupo de comunicação ganha força e começa a se tornar hegemônico nacionalmente. Soa contraditório, mas é parte da história complexa da Rede Globo, que tem como principal nome Roberto Marinho.
Empresa e jornalista são protagonistas da biografia “Roberto Marinho: A Globo na Ditadura – Dos Festivais às Bombas no Riocentro”, lançada pela editora Nova Fronteira. É o segundo volume de uma trilogia escrita pelo jornalista e doutor em História Leonencio Nossa.
O autor é conhecido por reportagens especiais sobre Amazônia, direitos humanos e política. Venceu duas vezes o Prêmio Esso e cinco vezes o Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos.
Enquanto o primeiro volume, lançado em 2019, cobria o período do nascimento de Roberto Marinho, em 1904, até a criação do Jornal Nacional, em 1967, o segundo volume continua a partir desse ponto, com destaque para o período da ditadura militar, até o atentado no Riocentro, em 1981.
A reportagem da Agência Brasil entrevistou Leonencio Nossa por telefone sobre os principais temas do novo livro que, segundo o autor, abrange o período mais intenso da vida pessoal e profissional de Roberto Marinho.
Para além dos recortes específicos da mídia brasileira, Leonencio espera que o livro ajude os leitores com mais uma reflexão crítica sobre tempos e pensamentos autoritários.
Agência Brasil: Por que você escolheu o Roberto Marinho como objeto de pesquisa?
Leonencio Nossa: O meu olhar de mundo é um olhar de jornalismo político. Teve um momento que eu lembrei de um velho projeto, que era escrever uma biografia de Roberto Marinho. Quando eu estudava na Universidade Federal do Espírito Santo, tinha acabado de ser lançado o livro Chatô: o rei do Brasil, do Fernando Morais. É uma biografia que vai marcar a história das biografias no país. Ela termina justamente com o declínio do Assis Chateaubriand e a ascensão de Roberto Marinho. E na faculdade, eu falava assim: “Olha, alguém vai escrever essa biografia, que é uma continuidade do novo dono da mídia. E o tempo foi passando, desenvolvi minha carreira em Brasília e essa história nunca foi contada em uma biografia. Em 2013, eu decidi me aventurar. Era uma forma também de discutir minha profissão, de discutir o país. Embora ele seja um personagem carioca que raramente saía do Rio a história dele e do grupo conta um pouco a história do país. E como tinha um grande volume de informações, resolvi fazer três livros.
AB: Como foi o processo de pesquisa para a biografia e com quais fontes você trabalhou?
LN: Eu levo em conta três vertentes no meu processo de pesquisa. A primeira é o trabalho documental, os acervos escritos. Eu procurei no Arquivo Nacional, bibliotecas e arquivos nos Estados Unidos, arquivos do Rio de Janeiro, como o do Palácio do Catete, da biblioteca do Senado, e arquivos privados. E aí, eu destacaria o acervo do Roberto Marinho que está dentro do Grupo Globo. Solicitei muitas informações e eles têm uma equipe coordenada pela Silvia Fiuza que faz esse trabalho com uma equipe de historiadores. Outra frente é a dos testemunhos orais. Procurei a família, os três filhos, alguns sobrinhos dele e muita gente que trabalhou e viveu com o Roberto. E tem a minha própria impressão visual de história. Como biógrafo, o maior medo é cons-truir um personagem que se afaste do real. Existe o Roberto Marinho da juventude, por exemplo, que é completamente desconhecido até pelos próprios filhos. Eu trabalhei com camadas de gerações para escrever sobre ele.
AB: Nesse sentido, como você projetou uma trilogia, é possível falar que cada livro apresenta um Roberto Marinho diferente? Seriam, pelo menos, três ao longo da vida?
LN: Eu diria que não. Roberto Marinho é um personagem sem muita contradição, que segue uma linha muito pré-estabelecida de vida. Mas a sua pergunta me faz pensar, porque ele foi um personagem muito envolvido com o próprio grupo de comunicação. Sou tentado a avaliar se ele se diferenciou muito nesses períodos. Porque, primeiro ele era o jornal antigo, que existia no Rio de Janeiro, e que contava a história da vida das pessoas. Depois, ele vai ser a rádio. Assim como vai ser também a TV. Essa televisão, que vai ser o marco de um país, deixou de ser rural para se tornar mais urbano. Com todos os problemas, mazelas e violência. Acho que os produtos que ele criou ajudam a entender o personagem. Por isso, eu fugi um pouco até da forma clássica de biografia para contar a história do jornal e depois a história da TV. Porque contar a história da Globo é contar a história do personagem, é entender a alma de um personagem. Ainda que seja uma empresa com uma polifonia, com pessoas que militam em vários campos políticos. Só que nessa variedade de vozes, dá para entender melhor o personagem.
AB: E o que explica ele ter se tornado esse homem tão poderoso e influente?
LN: Primeiro, havia uma base muito forte. O pai, Irineu, conseguiu construir um veículo inovador, O Globo. Por mais que Irineu seja um personagem considerado menor na historiografia da imprensa, ele vai mudar radicalmente o modelo de fazer jornal, por ser voltado para as pessoas do subúrbio. Tinha uma linguagem diferente dos jornais que existiam na cidade do Rio de Janeiro. E esse olhar, que não era para uma elite política nem intelectual, vai marcar a linguagem da Rádio Globo e depois da TV Globo. Até hoje você vê a Globo como um veículo que atinge um público maior.
AB: Estamos falando da ditadura militar, e esse é um dos pontos de maior crítica à trajetória do Roberto Marinho e da Globo. Como você vê essa relação?
LN: Na época da ditadura, havia muita ambivalência. Ao mesmo tempo que o Roberto Marinho se coloca como apoiador do regime, ele tem um produto, uma empresa, que precisa atender outro patrão, que é o mercado. No Brasil, o mercado consumidor surge e tem um boom realmente nos anos 1970. Nesse ponto, entra o conflito com o regime. Há censura de novelas, censura de programas jornalísticos. E a Globo vai viver essa ambivalência. É uma empresa que tem que crescer, mas ao mesmo tempo tem um regime e todas as discussões políticas.
AB: Que tipo de reflexões você espera que o livro provoque nos leitores?
LN: Eu queria que o leitor tivesse conhecimento da história de um país, que viveu nos anos 1970 um dos seus períodos mais difíceis, que foi o período autoritário. Há violência política, exercida pelo Estado, com mortes e tortura. Muitas gerações de artistas e jornalistas atuaram para reverter isso, em circunstâncias muito limitadas. Eles tentaram resistir ou reverter o jogo dentro das suas possibilidades. Acho que o livro ajuda a entender um pouco o que foi esse Brasil dos anos 1970 e a criação da Rede Globo, empresa que vai se tornar hegemônica na vida brasileira.
Fonte: Agência Brasil