Em algumas obras, ela foi apresentada como uma mulher sedutora, que foi capaz de encantar um dos homens mais poderosos da era da mineração. Por outro lado ela teria sido uma mãe exemplar e uma mulher que rompeu com paradigmas de sua época.
Chica da Silva é uma das mulheres mais conhecidas do período em que o Brasil era uma colônia dos portugueses.
Origens
O nome real de Chica da Silva era Francisca da Silva de Oliveira e ela era filha de um português militar branco, capitão das ordenanças, chamado Antônio Caetano de Sá e da africana Maria da Costa. O nascimento de Chica da Silva aconteceu no Arraial do Milho Verde, atualmente fica a cidade de Serro, Minas Gerais. O ano de nascimento de Chica é controverso, mas acredita-se ser entre 1731 e 1735.
Minas Gerais havia surgido numa corrida do ouro e pedras preciosas, menos de quatro décadas antes de ela nascer. O Brasil Colonial era visto como uma terra hostil pelos portugueses, quente demais e ‘civilizado’ de menos. Era uma aventura, não um lar. Algo que, numa sociedade patriarcal, definitivamente não era para mulheres.
As mulheres não estava lá por opção. Negras, escravas ou forras, que não seriam aceitas em Portugal. Daí as frequentes relações entre elas e os portugueses.
Como era comum naquela época, Chica da Silva, foi o fruto de um abuso sexual. No período em que a escravidão existia no Brasil, era bastante comum que escravas fossem abusadas sexualmente por seus senhores. A escritora Ana Miranda, autora do livro sobre a vida de Chica, ‘Xica da Silva – A Cinderela Negra’“, alega que, como consequência disso, as escravas que ficavam grávidas, frequentemente, abortavam seus filhos ou então recorriam ao infanticídio por não quererem que seus filhos fossem escravizados.
O destino de Chica da Silva, conforme ela ia crescendo, não foi outro além da escravidão. Seu pai não alforriou sua filha, pelo contrário, já que anos depois a vendeu para um médico, Manuel Pires Sardinha, que residia em Diamantina, na época chamado Arraial do Tijuco.
Manuel Pires abusou de Chica da Silva, ocasionando a gravidez dela e, meses depois, o nascimento de Simão Pires Sardinha, que alforriado pelo pai, recebeu seus bens em testamento e alguns historiadores afirmam que ele assumiu cargos importantes.
Ascensão
Quando Chica tinha aproximadamente 20 anos, chegou a Diamantina. Em 1753, João Fernandes de Oliveira, contratador de diamantes (responsável pela exploração da pedra preciosa) e, portanto, um homem riquíssimo, comprou Chica da Silva de seu antigo dono pelo valor de 800 mil-réis. Depois de alforriada, passou a viver com o contratador mesmo sem matrimônio oficial. Era comum na época que senhores de escravos alforriassem suas amantes – depois de anos, não em dois meses, como no caso dela. Chica da Silva passou a ser chamada oficialmente Francisca da Silva de Oliveira. Até 1770, Chica e João Fernandes mantiveram uma relação estável que lhes rendeu o total de 13 filhos, o que manteve Chica da Silva grávida durante grande parte do seu relacionamento com o contratador de diamantes.
Chica da Silva, mulata, frívola e prepotente, impôs-se de tal forma que o rico português atendia a todos os seus caprichos. O maior deles, como não conhecia o mar, pediu ao marido para construir um açude, onde lançou um navio com velas e mastros, igual às grandes embarcações. Foi essa relação que garantiu a ascensão social de Chica da Silva e fez com que se tornasse uma das mulheres mais ricas e importantes do Brasil Colônia.
Chica da Silva vivia em uma magnífica casa construída nas encostas da serra de São Francisco, onde promovia bailes e representações. Como todo membro da classe dos mais ricos em Minas Gerais, ela possuía inúmeras propriedades e muitos escravos, dos quais poucos foram alforriados. Só ia à Igreja ricamente vestida e coberta de joias, seguida por doze acompanhantes. Consta que muitas pessoas se curvavam à sua passagem e lhe beijavam as mãos. Ela também participava de irmandades religiosas, pois o envolvimento com ações da Igreja eram parte do protocolo social das mulheres da época.
A respeito dos filhos de Chica que foram concebidos no relacionamento com João Fernandes, os quatro homens foram educados na cidade de Coimbra, em Portugal. Eles foram levados pelo pai para lá, em 1770, ano em que o contratador teve de retornar para sua terra natal por conta do falecimento de seu pai. Isso, inclusive, marcou o fim do relacionamento de Chica e João Fernandes.
As filhas de Chica e de João Fernandes permaneceram em Diamantina e foram educadas no melhor educandário da região e que recebiam as filhas da elite mineira. Isso só foi possível, porque João Fernandes deixou recursos suficientes para manter Chica e suas filhas com uma vida bastante confortável.
Morte
A morte de Chica da Silva aconteceu em 15 de fevereiro de 1796 e os historiadores não sabem quais foram as causas. Chica foi enterrada na tumba número 16 na Igreja de São Francisco de Assis, local que era reservado somente para pessoas brancas e ricas. Isso evidencia o grau de integração social de Chica da Silva, embora os historiadores ainda apontem certos limites para a aceitação social de Chica na época.
Mito de Xica da Silva
A história de Chica da Silva sobreviveu exclusivamente na cultura oral por mais de 100 anos. Até 1868, quando o advogado diamantinense Joaquim Felício dos Santos, que atuou em nome de seus descendentes, escreveu sobre ela em suas Memórias do Distrito Diamantino da comarca do Serro Frio.
Mas essa primeira encarnação do mito de Xica da Silva era bem diferente do que conhecemos hoje. Assim a descreveu seu autor: “tinha as feições grosseiras, alta, corpulenta, trazia a cabeça rapada e coberta com uma cabeleira anelada em cachos pendentes, como então se usava; não possuía graças, não possuía beleza, não possuía espírito, não tivera educação, enfim não possuía atrativo algum, que pudesse justificar uma forte paixão”.
Segundo a historiadora Júnia Furtado, o autor reconstruiu a personagem conforme a visão que predominava em sua época e projetou suas impressões no século anterior. Joaquim Felício se baseou em cenas de seu cotidiano social, em que a mulher e a família deviam seguir à risca a moral cristã e onde imperavam os preconceitos contra ex-escravos, mulheres negras e uniões consensuais — isto é, fruto da paixão, não do acordo entre as famílias.
Era natural para ele, naquele contexto, demonizar a relação entre Chica e seu companheiro, descrevê-la como a encarnação de todos os estereótipos negativos da mulher negra: perversa, hipersexualizada, manipuladora e autoritária.
Mas a versão popular, livre desses traços moralizantes, continuou viva no mito. Nos anos 50, ‘Em Romanceiro da Inconfidência’, Cecília Meireles escreveu: “Nem Santa Ifigênia, toda em festa acesa, brilha mais que a negra, na sua riqueza. Contemplai, branquinhas, na sua varanda, a Chica da Silva, a Chica-que-manda!”.
Os versos mais uma vez reforçam os traços de uma mulher voluntariosa, que apostava na ostentação, e tinha todos os desejos realizados pelo contratador de diamantes.
Mais de um século depois, o sobrinho-neto de Joaquim Felício, João Felício dos Santos, revisitou a história e escreveu, em 1976, ‘Xica da Silva’, romance que serviu de inspiração para o filme de Cacá Diegues, realizado no mesmo ano. Segundo Júnia, João Felício reatualiza o mito e lhe atribui características ainda mais ao gosto da liberação sexual da década de 1970. A sexualidade, no lugar de torná-la um monstro, fazia dela libertadora.
De uma lenda da cidade de Diamantina, Xica da Silva tomou o país. “O cinema democratizou o mito e o tamanho da tela foi proporcional às dimensões que ele alcançou tanto no Brasil como no exterior”, diz Júnia Furtado.
O filme modificou até a grafia do nome e fez com que a figura da ex-escrava se mantivesse eternamente associada à sensualidade e à beleza. E rompeu definitivamente a imagem grotesca que Joaquim Felício compusera e que a historiografia ainda não havia contestado.
Por não estar vinculado a essa tradição, e tendo como missão conquistar o espectador, o cinema, ao enfatizar a sensualidade da mulher negra, construiu um mito que se ajustava ao imaginário coletivo da época”, conclui a historiadora. A novela, nos anos 1990, reforçou essa imagem.
Mãe Exemplar
Das memórias de Joaquim Felício à novela da extinta Manchete, Chica da Silva sempre foi descrita como lasciva e dominadora, uma mulher insaciável e capaz de dominar qualquer homem com o poder de seu corpo.
Mas façamos um teste de realidade aqui. O período da vida de Chica descrito na literatura, no cinema ou na TV é aquele em que ela viveu com João Fernandes, o contratador de diamantes. Foram 17 anos em que ela teve 13 filhos. Ou seja: ela esteve grávida por quase todo o relacionamento com João.
Documentos de instituições de ensino atestam o cuidado de Chica e João Fernandes com a educação formal dos filhos. Enquanto os quatro meninos frequentaram a escola na infância e seguiram com os estudos até a Universidade depois que foram com o pai para Portugal, as nove meninas foram internadas no Recolhimento de Nossa Senhora da Conceição de Monte Alegre de Macaúbas, o melhor educandário da capitania, destinado à elite mineira.
Após sua partida, João Fernandes deixou para Chica bens suficientes para que ela e as filhas vivessem com conforto até o fim dos seus dias. Não há registros de outros relacionamentos amorosos de Chica.
Note-se aqui a história de uma mãe e dona de casa exemplar para os padrões da época.
E, mesmo sendo assim tão dedicada, a inserção dessa mulher exemplar na sociedade branca não foi tão fácil quanto nos filmes. Segundo os estudos de Júnia Furtado, percebe-se a desigualdade do relacionamento entre Chica e João nas certidões de batismo dos filhos.
Lá constam nomes de padrinhos pouco notáveis socialmente, o que não era o razoável diante da riqueza do casal. Isto é, ninguém quis se comprometer batizando os mestiços. Além disso, documentos importantes para dar destino à herança do ex-contratador omitem o nome de Chica com o intuito de apagar a ascendência africana dos filhos do casal.
Sua trajetória revela a tentativa de branqueamento como forma de se inserirem mais favoravelmente na sociedade preconceituosa que apresentava mecanismos de exclusão baseados na cor, na raça e na condição de nascimento.
O dinheiro foi o maior aliado de Chica. Porque dinheiro não tem cor.
O Elefante Na Sala
Xica da Silva, o mito, participou da reafirmação de outro mito muito caro ao nacionalismo brasileiro — a democracia racial. “A sustentação simbólica desse mito de nação passa pela seleção de símbolos que reforçam a crença na fraternidade racial, marcada por uma suposta igualdade nas relações sociais”.
A representação de Chica da Silva, por meio de Xica, também foi parte da construção da imagem da mulher negra no Brasil. Como explica Flávia, “ela é nossa matriz nacional da feminilidade negra e esse padrão estético ainda marca o imaginário publicitário, por exemplo.” Ainda segundo a socióloga , o problema do estereótipo é que ele cria realidade e fixa imagens.
A tentativa de branqueamento acompanhou os descendentes de Chica e o destino de seus filhos foi paradoxal. Houve ocasiões em que a fortuna que herdaram, assim como a importância do pai e dos ascendentes paternos, foram determinantes. Em outras, a cor que herdaram da mãe pesaram negativamente.
João Fernandes de Oliveira Grijó, o primogênito masculino, foi nomeado o principal herdeiro de seu pai e recebeu dois terços de tudo que ele deixou quando morreu. Dinheiro nunca foi problema. Mas como seu pai tinha por meta dar prosseguimento ao processo de tornar a família cada vez mais notável, as cláusulas de sucessão impediam o livre casamento dos herdeiros até os trinta anos. Eles só poderiam se casar com membros mais nobres do que eles mesmos.
Não foi o que aconteceu, já que Grijó se casou com 28 anos com uma filha de lavradores. O casamento foi autorizado pelo governo português sob dois argumentos: 1) de que a noiva estaria grávida e era necessário reparar sua honra. 2) era que, em sua condição de mestiço, era praticamente impossível conseguir um casamento como o exigido pelo pai.
Quanto às filhas, como a mãe, conseguiram se casar com jovens portugueses. A herança recebida do pai foi suficiente para o pagamento dos dotes. Mesmo assim, algumas delas jamais legitimaram suas relações.
Ao longo dos anos, e bem recentemente, Xica da Silva foi encarada como uma história exemplar do que supostamente único e positivo na história brasileira. Sua história mostrava que tudo era possível no país da democracia racial. Sua mística sexual falava a certo romantismo exótico, dos mestiços como uma espécie de produto do terror nacional. Da figura carnavalesca da “mulata”.
Ao longo da história brasileira, is- so servia como uma distinção racista, afirmar que alguém era “menos que preto”, abrindo portas de inclusão social. No caso das mulheres, essa distinção também levou a certo fetiche, celebrado em verso e prosa. De que haveria uma capacidade sexual superior na mestiça — tornada, às vezes descaradamente, um produto regional, atrativo turístico do Brasil.
A nova Chica, com “ch”, surge da revisão de velhas ideias que o Brasil tinha a respeito de si próprio.
A produção científica tem sido uma arma importante contra as ideologias raciais no Brasil. Quanto mais avança, mais sabemos dos processos sociais que produzem diferenças e desigualdades raciais na formação de nossa nação.
Fontes: www.ebiografia.com; mundoeducacao.uol.com.br; aventurasnahistoria.uol.com.br